Helena tinha um sonho. Um sonho comum entre as meninas de sua idade. Um sonho de encontrar seu príncipe encantado, viver uma linda história de amor e ser feliz... feliz para sempre. Na verdade, ela acreditava já ter encontrado o príncipe com quem tanto sonhara.
Lá ia Helena a todas as missas de domingo. Nas palavras do padre e nos ritos ela nem prestava atenção, pois esta, por sua vez, estava voltada para o seu príncipe de cabelos sobre os ombros e encaracolados nas pontas que tocava, atenciosamente, o seu violão. Cada nota, com seus gestos e sons, eram observados e sentidos nos mínimos detalhes por Helena. Sua admiração era incansável e tão pouco contestável.
Benção final? Para Helena não precisava de benção final, aliás, podia todos receber a benção e irem embora, que ela permaneceria ali, ouvindo e sentindo cada dó-ré-mi reproduzido pelas mãos de seu príncipe encantado. Mãos tão pesadas, apesar dos seus poucos quinze para dezesseis anos de idade. Mãos marcadas por calos grossos e profundos, daquele que desde cedo aprendera o doce amargo do trabalho com a inchada, no entanto, mãos que levemente produziam, através do violão, o mais singelo som. Helena sonhava com estas mãos acariciando as suas.
E os calos que a machucariam? Não... estes não podiam machucá-la e nem tão pouco, arranhá-la, pois eles estavam amaciados pelas notas musicais que eram tocadas com tanto carinho e com tanto amor. As mesmas mãos, que além dos hinos dominicais, eram capazes de produzir novas canções tão lindas e profundas, não seriam capazes de ferir a tão sonhadora Helena.
As missas acabavam, mas durante a semana o príncipe de Helena continuava a tocar... tocava em seus sonhos noturnos, em seus dias silenciosos e até mesmo, nos momentos mais inoportunos. Ele tocava e ela dançava... ela dançava e ele tocava... distantes assim. Ela, porém, o via tocar, mas ele, jamais a vira dançar.
Houve um belo dia que o príncipe tomou o seu cavalo e saiu a galopar. Largou a inchada em busca de um futuro melhor, foi estudar para ser alguém na vida e conhecer o mundo lá fora. Mas também deixou para trás, as missas de domingo, o violão e sua princesa desconhecida.
Helena não perdera os seus sonhos, no entanto, eles tornaram-se distantes e mais rígidos, talvez, a maturidade os pesasse. Ela continuava indo às missas de domingo, agora, ouvindo o que o padre dizia e o vendo apreensivamente. Qualquer olhar ao redor, mostrava-lhe um espaço vazio e as notas musicais, não a tocava mais, não eram as mesmas, embora não as tivessem mudado. O dó ainda era dó e o ré ainda era ré, mas as mãos não eram as mesmas.
Fase de adolescente: fase que dá vontade e passa... que os sonhos se constroem e reconstroem... em que nada é para sempre. Fase que marcou a vida de Helena – porque se fosse apenas uma fase sem importância, nem existiria – assim ela pensava.
Helena foi crescendo cada dia mais distante de seu sonho de menina, mas com marcas em seu coração que refletiam em suas atitudes e escolhas – Helena não tem coração – era o que diziam, mas ela o sentia como ninguém podia senti-lo. Sentia o desejo de ser como realmente era e de falar para o mundo, sem parar, tudo o que havia acontecido, o que sentia, o que sonhava e o que ainda desejava viver.
Talvez fosse melhor mesmo se eu não tivesse coração. Assim, não sentiria saudades do que não vivi e não haveria essa dor que há em mim...uma dor vazia e silenciosa.
Com o passar dos anos, Helena, sem os vê passar, vive um novo sonho, dança uma nova música com o seu par. Sim! Agora há de fato um par, e ela, não está a dançar sozinha. Um novo par... um novo príncipe para os seus sonhos... uma outra Helena. Assim ela parecia se vê: uma nova Helena. E talvez, agora, ela estivesse feliz, pois estava vivendo uma história, que apesar de ser nova, era a que ela tanto sonhara, ou então, ela não quisesse ser essa nova pessoa, mas sentia a necessidade de ser.
As pessoas costumavam dizer, que apesar da idade avançada, refletida na fisionomia de cada uma delas, sentiam-se jovens interiormente – há uma adolescente que se esconde dentro de mim, entristecida pelos seus sonhos frustrados e que mais parece uma criança insatisfeita com um brinquedo novo – o brinquedo, mesmo que perfeito, parecia para Helena um pouco que incompleto.
Como seria Helena se os seus primeiros sonhos tivessem se realizado? Como teria sido a sua vida e qual seria o seu presente? Helena sentia saudades da pessoa que ela já não era mais e que não conseguira ser. Era o dó-ré-mi que a saudava e que uma vez ou outra, tocava incessantemente no silêncio de seu quarto. Durante todas as manhãs, Helena despedia-se e a noite reencontrava-se, mesmo que sem querer.
Sim! Helena não queria. Não queria ter crescido e tão pouco, se prender ao passado, mesmo que no vazio de seu quarto, mesmo que nas primeiras ou nas últimas horas do dia, mas não foi possível evitar. E o seu príncipe, que também crescera sem que ela o pudesse ver, também foi inevitável e mais ainda, foi imprevisível o estranho impacto que a causou: um frente ao outro. Ele já não tinha os seus cabelos encaracolados nas pontas sobre os ombros. Seu rosto, não era mais o de um menino, mas o seu olhar, ainda brilhava como aquele que tocava o violão aos domingos, agora, porém, eram mais profundos: o olhar de um homem. E o seu corpo? Ah... o seu corpo... parecia que haviam redesenhado. E eu falei do seu corpo? Sim! Eu falei. Não o via nas missas, mas agora, percebo que o meu olhar é diferente e eu o vejo, tanto quanto ele me vê. Eu sinto que ele me vê... ele me vê como nunca me viu antes.
Tão próximos e tão distantes, estavam os dois de volta às missas de domingo, agora, porém, não era apenas Helena quem o enxergava, ele também a enxergava e não via mais aquela garotinha sonhadora, via uma mulher que desejava – assim me sinto diante dos seus olhares: desejada. Já não sou mais aquela adolescente. – Helena também o desejava, tanto quanto antes ou mais, aliás, muito mais. No entanto, havia outros olhares entre os deles e não podiam ser ignorados, era preciso por outras vezes, esconder-se para não serem vistos e o que um dia poderia ser possível, tornou-se proibido.
Há quem diga que o proibido é o mais gostoso de viver, talvez quem ainda o diz nunca sentiu o desejo de realmente viver, pois quando me escondo deixo de ser quem eu gostaria de ser, crio máscaras pelas quais não queria ter que usar. Sei que a minha história é somente minha, mas do que adianta tê-la se não me é possível vivê-la? Do que adianta viver um momento feliz, se não posso compartilhar com os demais personagens de minha vida? – mais do que dividir um ou outro momento proibido com o seu príncipe, Helena sentiu um novo querer: o querer crescer. Olhou-se minuciosamente através dos olhares de seu príncipe, observou-se... viu-se mulher e quis ser mulher. Helena aprendera que na vida real, os príncipes nem sempre terminam com suas princesas, e tão pouco, vivem felizes para sempre.
Marciele de Oliveira