sábado, 27 de agosto de 2011

Príncipe da vida real

          Helena tinha um sonho. Um sonho comum entre as meninas de sua idade. Um sonho de encontrar seu príncipe encantado, viver uma linda história de amor e ser feliz... feliz para sempre. Na verdade, ela acreditava já ter encontrado o príncipe com quem tanto sonhara.
          Lá ia Helena a todas as missas de domingo. Nas palavras do padre e nos ritos ela nem prestava atenção, pois esta, por sua vez, estava voltada para o seu príncipe de cabelos sobre os ombros e encaracolados nas pontas que tocava, atenciosamente, o seu violão. Cada nota, com seus gestos e sons, eram observados e sentidos nos mínimos detalhes por Helena. Sua admiração era incansável e tão pouco contestável.
          Benção final? Para Helena não precisava de benção final, aliás, podia todos receber a benção e irem embora, que ela permaneceria ali, ouvindo e sentindo cada dó-ré-mi reproduzido pelas mãos de seu príncipe encantado. Mãos tão pesadas, apesar dos seus poucos quinze para dezesseis anos de idade. Mãos marcadas por calos grossos e profundos, daquele que desde cedo aprendera o doce amargo do trabalho com a inchada, no entanto, mãos que levemente produziam, através do violão, o mais singelo som. Helena sonhava com estas mãos acariciando as suas.
          E os calos que a machucariam? Não... estes não podiam machucá-la e nem tão pouco, arranhá-la, pois eles estavam amaciados pelas notas musicais que eram tocadas com tanto carinho e com tanto amor. As mesmas mãos, que além dos hinos dominicais, eram capazes de produzir novas canções tão lindas e profundas, não seriam capazes de ferir a tão sonhadora Helena.
          As missas acabavam, mas durante a semana o príncipe de Helena continuava a tocar... tocava em seus sonhos noturnos, em seus dias silenciosos e até mesmo, nos momentos mais inoportunos. Ele tocava e ela dançava... ela dançava e ele tocava... distantes assim. Ela, porém, o via tocar, mas ele, jamais a vira dançar.
          Houve um belo dia que o príncipe tomou o seu cavalo e saiu a galopar. Largou a inchada em busca de um futuro melhor, foi estudar para ser alguém na vida e conhecer o mundo lá fora. Mas também deixou para trás, as missas de domingo, o violão e sua princesa desconhecida.
          Helena não perdera os seus sonhos, no entanto, eles tornaram-se distantes e mais rígidos, talvez, a maturidade os pesasse. Ela continuava indo às missas de domingo, agora, ouvindo o que o padre dizia e o vendo apreensivamente. Qualquer olhar ao redor, mostrava-lhe um espaço vazio e as notas musicais, não a tocava mais, não eram as mesmas, embora não as tivessem mudado. O dó ainda era dó e o ré ainda era ré, mas as mãos não eram as mesmas.
          Fase de adolescente: fase que dá vontade e passa... que os sonhos se constroem e reconstroem... em que nada é para sempre. Fase que marcou a vida de Helena – porque se fosse apenas uma fase sem importância, nem existiria – assim ela pensava.
          Helena foi crescendo cada dia mais distante de seu sonho de menina, mas com marcas em seu coração que refletiam em suas atitudes e escolhas – Helena não tem coração – era o que diziam, mas ela o sentia como ninguém podia senti-lo. Sentia o desejo de ser como realmente era e de falar para o mundo, sem parar, tudo o que havia acontecido, o que sentia, o que sonhava e o que ainda desejava viver.
          Talvez fosse melhor mesmo se eu não tivesse coração. Assim, não sentiria saudades do que não vivi e não haveria essa dor que há em mim...uma dor vazia e silenciosa.
          Com o passar dos anos, Helena, sem os vê passar, vive um novo sonho, dança uma nova música com o seu par. Sim! Agora há de fato um par, e ela, não está a dançar sozinha. Um novo par... um novo príncipe para os seus sonhos... uma outra Helena. Assim ela parecia se vê: uma nova Helena. E talvez, agora, ela estivesse feliz, pois estava vivendo uma história, que apesar de ser nova, era a que ela tanto sonhara, ou então, ela não quisesse ser essa nova pessoa, mas sentia a necessidade de ser.
          As pessoas costumavam dizer, que apesar da idade avançada, refletida na fisionomia de cada uma delas, sentiam-se jovens interiormente – há uma adolescente que se esconde dentro de mim, entristecida pelos seus sonhos frustrados e que mais parece uma criança insatisfeita com um brinquedo novo – o brinquedo, mesmo que perfeito, parecia para Helena um pouco que incompleto.
          Como seria Helena se os seus primeiros sonhos tivessem se realizado? Como teria sido a sua vida e qual seria o seu presente? Helena sentia saudades da pessoa que ela já não era mais e que não conseguira ser. Era o dó-ré-mi que a saudava e que uma vez ou outra, tocava incessantemente no silêncio de seu quarto. Durante todas as manhãs, Helena despedia-se e a noite reencontrava-se, mesmo que sem querer.
          Sim! Helena não queria. Não queria ter crescido e tão pouco, se prender ao passado, mesmo que no vazio de seu quarto, mesmo que nas primeiras ou nas últimas horas do dia, mas não foi possível evitar. E o seu príncipe, que também crescera sem que ela o pudesse ver, também foi inevitável e mais ainda, foi imprevisível o estranho impacto que a causou: um frente ao outro. Ele já não tinha os seus cabelos encaracolados nas pontas sobre os ombros. Seu rosto, não era mais o de um menino, mas o seu olhar, ainda brilhava como aquele que tocava o violão aos domingos, agora, porém, eram mais profundos: o olhar de um homem. E o seu corpo? Ah... o seu corpo... parecia que haviam redesenhado. E eu falei do seu corpo? Sim! Eu falei. Não o via nas missas, mas agora, percebo que o meu olhar é diferente e eu o vejo, tanto quanto ele me vê. Eu sinto que ele me vê... ele me vê como nunca me viu antes.
          Tão próximos e tão distantes, estavam os dois de volta às missas de domingo, agora, porém, não era apenas Helena quem o enxergava, ele também a enxergava e não via mais aquela garotinha sonhadora, via uma mulher que desejava – assim me sinto diante dos seus olhares: desejada. Já não sou mais aquela adolescente. – Helena também o desejava, tanto quanto antes ou mais, aliás, muito mais. No entanto, havia outros olhares entre os deles e não podiam ser ignorados, era preciso por outras vezes, esconder-se para não serem vistos e o que um dia poderia ser possível, tornou-se proibido.
          Há quem diga que o proibido é o mais gostoso de viver, talvez quem ainda o diz nunca sentiu o desejo de realmente viver, pois quando me escondo deixo de ser quem eu gostaria de ser, crio máscaras pelas quais não queria ter que usar. Sei que a minha história é somente minha, mas do que adianta tê-la se não me é possível vivê-la? Do que adianta viver um momento feliz, se não posso compartilhar com os demais personagens de minha vida? – mais do que dividir um ou outro momento proibido com o seu príncipe, Helena sentiu um novo querer: o querer crescer. Olhou-se minuciosamente através dos olhares de seu príncipe, observou-se... viu-se mulher e quis ser mulher. Helena aprendera que na vida real, os príncipes nem sempre terminam com suas princesas, e tão pouco, vivem felizes para sempre.

Marciele de Oliveira

2 comentários:

  1. Ótimo conto, Marciele; E que crônica da vida conseguiu plantar nele, hein?
    Adorei a temática e a coerência. Confesso, temi por um final feliz, meloso e chato... -rs


    Abração, meninas,

    Rodrigo Davel

    ResponderExcluir
  2. Olá Rodrigo, obrigada...eu tbm queria um final feliz,talvez diria que a Helena também o quisesse...rsrsrs...mas...

    Abraços

    Marciele

    ResponderExcluir